O testamento de
Maria Felisberta da Silva, mais conhecida como Maria Tangará, datado de 27 de
novembro de 1836 e apresentado em 26 de janeiro de 1837, oferece uma janela
detalhada para a sociedade brasileira do século XIX, particularmente no que
concerne à estrutura familiar, relações de propriedade e prática religiosa.
Maria Felisberta
se identifica como filha legítima de Miguel Gonçalves Palmeira e Dona Anna
Tereza da Silva, naturais de Congonhas de Sabará. Ela destaca que não recebeu
herança de seus pais, sugerindo que sua situação econômica era independente do
legado parental. Casada com o Sargento Mor Ignacio Joaquim da Cunha, Maria
lista nove filhos, incluindo Delfina, Ildefonso, Pulquéria, Gomes, Lino,
Bazílio, Matildes, Porcina e Balbina. Esta estrutura familiar numerosa é típica
da época, refletindo a importância da família extensa na sociedade colonial.
Herança e
Distribuição de Bens.
Maria Felisberta
faz um detalhamento minucioso das disposições de sua "terça", parte
da herança que podia ser livremente distribuída conforme a legislação da época.
Este aspecto do testamento é crucial para entender as relações de propriedade e
a importância dos bens móveis e imóveis, refletindo a complexidade da sociedade
escravocrata e patriarcal da época, incluindo escravos, que eram uma parte
significativa da riqueza.
Filhos e Netos:
Ela distribui bens tanto entre seus filhos quanto entre seus netos,
estabelecendo claramente os herdeiros e suas partes na herança. A presença de
testamenteiros – seu marido, seu filho Ildefonso e seu filho Bazílio – indica a
necessidade de garantir a execução fiel de suas vontades.
Escravos:
A distribuição de escravos como parte da herança evidencia a mercantilização de
pessoas, prática comum na época. Escravos como Rufino, Tereza, Luíza e outros
são mencionados como bens significativos a serem legados aos filhos.
Bens Materiais:
Os escravos mencionados no testamento são destacados como valiosos bens
patrimoniais. Além dos cativos, Maria Felisberta lega quantias de dinheiro,
animais (cavalos, éguas, vacas) e objetos pessoais (arreios e estribos de
prata), refletindo a diversidade de bens que compunham a riqueza pessoal.
Práticas Religiosas
Maria se declara
católica romana, fiel à fé em que viveu. Ela deseja um funeral simples, no
hábito de São Francisco, e solicita um oitavário de missas para sua alma. Este
aspecto do testamento ressalta a profunda influência da religião na vida
cotidiana e nas disposições finais das pessoas durante o século XIX.
Testamenteiros
e Prazos
Maria designa
três testamenteiros e concede a eles doze anos para prestar contas, com a
possibilidade de prorrogação por mais três anos. Esta cláusula reflete a
complexidade e a extensão dos processos de inventário e partilha na época.
Aspectos
específicos do testamento de Maria Felisberta da Silva.
Contexto da
Escravidão no Século XIX
No Brasil do
século XIX, a escravidão era uma instituição central na economia e na
sociedade. Os escravos eram fundamentais para a produção agrícola, mineração e
serviços domésticos. Eles eram considerados propriedade dos seus senhores e
frequentemente incluídos em heranças como bens móveis.
Escravos Mencionados no Testamento
1. Rufino e
Tereza: Rufino e Tereza são mencionados como bens de grande valor, sendo
legados ao filho Lino por seus bons serviços. A escolha de Lino como
beneficiário indica que ele tinha uma relação especial com esses escravos,
possivelmente baseada em confiança e utilidade.
2. Luiza e
Felicidade, Antonia e Narciza, André: Luiza cabra e sua filha Felicidade,
Antônia com sua filha Narciza, e André são legados à filha Delfina. A divisão
de escravos com suas famílias demonstra uma tentativa de manter esses laços
intactos, embora sob a propriedade de um novo senhor.
3. Ignacia,
Felipe e Maria: A filha Matildes recebe a crioula Ignacia, seu marido Felipe, e
a crioulinha Maria. Esta disposição mostra a continuidade da família escrava
sob a nova senhora, Matildes.
4. Joaquina
Conga, Victoria, Rita Mulata e Luis Moçambique: Estes escravos são destinados à
filha Porcina, evidenciando a prática de transferência de escravos entre
familiares como forma de assegurar a continuidade do trabalho e da manutenção
econômica.
5. Jacintho Mina:
Um escravo adicional, Jacintho Mina, é especificamente mencionado como legado a
Matildes, reforçando sua posição de beneficiária importante no testamento.
A Economia Rural da Época
A menção a
animais como cavalos, éguas e vacas no testamento de Maria Felisberta destaca a
importância da pecuária na economia rural mineira do século XIX. Os animais
eram essenciais não apenas para o trabalho agrícola, mas também para transporte
e como indicadores de status social.
Cavalos e
Éguas: Legados a filhos e filhas, indicam a importância da mobilidade e do
trabalho agrícola. O cavalo de sela para Delfina e os potros para Pulquéria são
exemplos de como esses animais eram valiosos.
Vacas: As vacas
eram fundamentais para a produção de leite e derivados, essenciais na dieta e
economia doméstica. A distribuição de várias vacas entre os filhos mostra a
intenção de Maria em garantir a sustentabilidade econômica de cada um.
Bens Materiais e Econômicos
Maria Felisberta
também legou quantias significativas de dinheiro a seus filhos e netos,
refletindo uma economia monetária em desenvolvimento, além da tradicional
economia baseada em terras e bens móveis. Quantias como quatrocentos mil réis
para Ildefonso e Pulquéria, e trezentos mil réis para Lino, indicam a tentativa
de prover recursos financeiros imediatos.
Religião nas
Disposições Testamentárias
Maria se declara
católica romana e deseja um funeral simples, no hábito de São Francisco. Este
pedido reflete a humildade e devoção religiosa, comuns entre os membros das
irmandades religiosas. A solicitação de um oitavário de missas sublinha a
crença na importância das orações para a alma dos falecidos.
Participação das Irmandades
A menção ao
hábito de São Francisco indica a afiliação de Maria a uma irmandade
franciscana, comum na sociedade colonial, onde as irmandades desempenhavam um
papel importante na vida religiosa e social. Elas forneciam suporte espiritual
e, muitas vezes, material, para seus membros.
Considerações
Finais
O testamento de
Maria Felisberta da Silva é um documento multifacetado que revela muito sobre a
vida e as práticas da elite mineira do século XIX. Através da análise de
aspectos específicos como a vida dos escravos, a economia rural e o papel da
religião, podemos compreender melhor as complexas interações sociais e
econômicas da época.
O testamento de
Maria Felisberta da Silva não é apenas um documento legal; é um testemunho
histórico que revela as dinâmicas familiares, econômicas e sociais de uma
mulher da elite mineira do século XIX. Ele apresenta como as relações de poder
e propriedade estavam intrinsecamente ligadas à posse de escravos e à gestão de
uma vasta gama de bens móveis e imóveis. Além disso, destaca a influência da
religião na vida cotidiana e nas disposições finais de uma pessoa, permitindo
uma compreensão mais profunda das complexidades da sociedade colonial
brasileira, oferecendo uma compreensão sobre a vida privada e os valores
culturais da época.
Apresentação
do Testamento de Maria Tangará
Em 26 de janeiro
de 1837, foi apresentado às autoridades um testamento cozido e lacrado de Maria
Tangará, como declarado no rótulo. Após uma avaliação cuidadosa, não foram
encontradas dúvidas ou irregularidades no documento, levando à ordem de seu
cumprimento e registro.
Este documento
histórico foi formalizado com o termo de aceitação do primeiro testamenteiro,
assinado por Ignacio Joaquim da Cunha, uma figura relevante da época. O ato de
registro de testamentos como este é fundamental para a preservação da história
e das tradições de Pitangui, permitindo um vislumbre das práticas legais e
sociais do período.
A aceitação e
cumprimento deste testamento evidenciam a importância dos procedimentos legais
na época, refletindo a organização e seriedade com que assuntos de herança e
última vontade eram tratados. Além disso, revela a relevância de figuras como
Ignacio Joaquim da Cunha na manutenção da ordem e cumprimento das leis locais.
Eis o trecho do documento
original:
“Aos vinte e
seis de janeiro de 1837 me foi apresentado este Testamento cozido e lacrado
como no rótulo se declara, e não achando nele dúvida, faça mando que se cumpra
e registre. Pitangui 26 de Janeiro de 1837... Termo de aceitação do 1º Testamenteiro
assinado por Ignacio Joaquim Da Cunha aos 26 de Janeiro de 1837”
Este trecho do
testamento, datado de 1837, oferece um vislumbre das práticas jurídicas e
sociais da época em Pitangui. A formalidade do documento e a assinatura de
Ignacio Joaquim da Cunha, figura de destaque, sublinham a seriedade com que os
assuntos de herança eram tratados. Este evento é um exemplo claro de como os
registros históricos são essenciais para compreender e valorizar a história,
fornecendo detalhes valiosos sobre a vida, as pessoas e as práticas de tempos
passados. Além disso, a existência e a preservação desses documentos históricos
são cruciais para entendermos as tradições e a memória coletiva de nossa
comunidade.
Referências:
Realização, arte
e roteiro: Historiador Charles Aquino
Pesquisa e
Paleografia: Historiador Gilson Magela Campos (In Memoriam) em 2010.
Acervo: IHP – Instituto Histórico de Pitangui, Minas Gerais.
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