sexta-feira, 19 de julho de 2024

MARIA TANGARÁ

O testamento de Maria Felisberta da Silva, mais conhecida como Maria Tangará, datado de 27 de novembro de 1836 e apresentado em 26 de janeiro de 1837, oferece uma janela detalhada para a sociedade brasileira do século XIX, particularmente no que concerne à estrutura familiar, relações de propriedade e prática religiosa.

Maria Felisberta se identifica como filha legítima de Miguel Gonçalves Palmeira e Dona Anna Tereza da Silva, naturais de Congonhas de Sabará. Ela destaca que não recebeu herança de seus pais, sugerindo que sua situação econômica era independente do legado parental. Casada com o Sargento Mor Ignacio Joaquim da Cunha, Maria lista nove filhos, incluindo Delfina, Ildefonso, Pulquéria, Gomes, Lino, Bazílio, Matildes, Porcina e Balbina. Esta estrutura familiar numerosa é típica da época, refletindo a importância da família extensa na sociedade colonial.

Herança e Distribuição de Bens.

Maria Felisberta faz um detalhamento minucioso das disposições de sua "terça", parte da herança que podia ser livremente distribuída conforme a legislação da época. Este aspecto do testamento é crucial para entender as relações de propriedade e a importância dos bens móveis e imóveis, refletindo a complexidade da sociedade escravocrata e patriarcal da época, incluindo escravos, que eram uma parte significativa da riqueza.

Filhos e Netos: Ela distribui bens tanto entre seus filhos quanto entre seus netos, estabelecendo claramente os herdeiros e suas partes na herança. A presença de testamenteiros – seu marido, seu filho Ildefonso e seu filho Bazílio – indica a necessidade de garantir a execução fiel de suas vontades.

Escravos: A distribuição de escravos como parte da herança evidencia a mercantilização de pessoas, prática comum na época. Escravos como Rufino, Tereza, Luíza e outros são mencionados como bens significativos a serem legados aos filhos.

Bens Materiais: Os escravos mencionados no testamento são destacados como valiosos bens patrimoniais. Além dos cativos, Maria Felisberta lega quantias de dinheiro, animais (cavalos, éguas, vacas) e objetos pessoais (arreios e estribos de prata), refletindo a diversidade de bens que compunham a riqueza pessoal.

Práticas Religiosas

Maria se declara católica romana, fiel à fé em que viveu. Ela deseja um funeral simples, no hábito de São Francisco, e solicita um oitavário de missas para sua alma. Este aspecto do testamento ressalta a profunda influência da religião na vida cotidiana e nas disposições finais das pessoas durante o século XIX.

Testamenteiros e Prazos

Maria designa três testamenteiros e concede a eles doze anos para prestar contas, com a possibilidade de prorrogação por mais três anos. Esta cláusula reflete a complexidade e a extensão dos processos de inventário e partilha na época.

 

Aspectos específicos do testamento de Maria Felisberta da Silva.


Contexto da Escravidão no Século XIX

No Brasil do século XIX, a escravidão era uma instituição central na economia e na sociedade. Os escravos eram fundamentais para a produção agrícola, mineração e serviços domésticos. Eles eram considerados propriedade dos seus senhores e frequentemente incluídos em heranças como bens móveis.

Escravos Mencionados no Testamento

1. Rufino e Tereza: Rufino e Tereza são mencionados como bens de grande valor, sendo legados ao filho Lino por seus bons serviços. A escolha de Lino como beneficiário indica que ele tinha uma relação especial com esses escravos, possivelmente baseada em confiança e utilidade.

2. Luiza e Felicidade, Antonia e Narciza, André: Luiza cabra e sua filha Felicidade, Antônia com sua filha Narciza, e André são legados à filha Delfina. A divisão de escravos com suas famílias demonstra uma tentativa de manter esses laços intactos, embora sob a propriedade de um novo senhor.

3. Ignacia, Felipe e Maria: A filha Matildes recebe a crioula Ignacia, seu marido Felipe, e a crioulinha Maria. Esta disposição mostra a continuidade da família escrava sob a nova senhora, Matildes.

4. Joaquina Conga, Victoria, Rita Mulata e Luis Moçambique: Estes escravos são destinados à filha Porcina, evidenciando a prática de transferência de escravos entre familiares como forma de assegurar a continuidade do trabalho e da manutenção econômica.

5. Jacintho Mina: Um escravo adicional, Jacintho Mina, é especificamente mencionado como legado a Matildes, reforçando sua posição de beneficiária importante no testamento.

A Economia Rural da Época

A menção a animais como cavalos, éguas e vacas no testamento de Maria Felisberta destaca a importância da pecuária na economia rural mineira do século XIX. Os animais eram essenciais não apenas para o trabalho agrícola, mas também para transporte e como indicadores de status social.

Cavalos e Éguas: Legados a filhos e filhas, indicam a importância da mobilidade e do trabalho agrícola. O cavalo de sela para Delfina e os potros para Pulquéria são exemplos de como esses animais eram valiosos.

Vacas: As vacas eram fundamentais para a produção de leite e derivados, essenciais na dieta e economia doméstica. A distribuição de várias vacas entre os filhos mostra a intenção de Maria em garantir a sustentabilidade econômica de cada um.

 Bens Materiais e Econômicos

Maria Felisberta também legou quantias significativas de dinheiro a seus filhos e netos, refletindo uma economia monetária em desenvolvimento, além da tradicional economia baseada em terras e bens móveis. Quantias como quatrocentos mil réis para Ildefonso e Pulquéria, e trezentos mil réis para Lino, indicam a tentativa de prover recursos financeiros imediatos.

Religião nas Disposições Testamentárias

Maria se declara católica romana e deseja um funeral simples, no hábito de São Francisco. Este pedido reflete a humildade e devoção religiosa, comuns entre os membros das irmandades religiosas. A solicitação de um oitavário de missas sublinha a crença na importância das orações para a alma dos falecidos.

 Participação das Irmandades

A menção ao hábito de São Francisco indica a afiliação de Maria a uma irmandade franciscana, comum na sociedade colonial, onde as irmandades desempenhavam um papel importante na vida religiosa e social. Elas forneciam suporte espiritual e, muitas vezes, material, para seus membros.

 

Considerações Finais

O testamento de Maria Felisberta da Silva é um documento multifacetado que revela muito sobre a vida e as práticas da elite mineira do século XIX. Através da análise de aspectos específicos como a vida dos escravos, a economia rural e o papel da religião, podemos compreender melhor as complexas interações sociais e econômicas da época.

O testamento de Maria Felisberta da Silva não é apenas um documento legal; é um testemunho histórico que revela as dinâmicas familiares, econômicas e sociais de uma mulher da elite mineira do século XIX. Ele apresenta como as relações de poder e propriedade estavam intrinsecamente ligadas à posse de escravos e à gestão de uma vasta gama de bens móveis e imóveis. Além disso, destaca a influência da religião na vida cotidiana e nas disposições finais de uma pessoa, permitindo uma compreensão mais profunda das complexidades da sociedade colonial brasileira, oferecendo uma compreensão sobre a vida privada e os valores culturais da época.

 

Apresentação do Testamento de Maria Tangará

Em 26 de janeiro de 1837, foi apresentado às autoridades um testamento cozido e lacrado de Maria Tangará, como declarado no rótulo. Após uma avaliação cuidadosa, não foram encontradas dúvidas ou irregularidades no documento, levando à ordem de seu cumprimento e registro.

Este documento histórico foi formalizado com o termo de aceitação do primeiro testamenteiro, assinado por Ignacio Joaquim da Cunha, uma figura relevante da época. O ato de registro de testamentos como este é fundamental para a preservação da história e das tradições de Pitangui, permitindo um vislumbre das práticas legais e sociais do período.

A aceitação e cumprimento deste testamento evidenciam a importância dos procedimentos legais na época, refletindo a organização e seriedade com que assuntos de herança e última vontade eram tratados. Além disso, revela a relevância de figuras como Ignacio Joaquim da Cunha na manutenção da ordem e cumprimento das leis locais.

Eis o trecho do documento original:

“Aos vinte e seis de janeiro de 1837 me foi apresentado este Testamento cozido e lacrado como no rótulo se declara, e não achando nele dúvida, faça mando que se cumpra e registre. Pitangui 26 de Janeiro de 1837... Termo de aceitação do 1º Testamenteiro assinado por Ignacio Joaquim Da Cunha aos 26 de Janeiro de 1837”

Este trecho do testamento, datado de 1837, oferece um vislumbre das práticas jurídicas e sociais da época em Pitangui. A formalidade do documento e a assinatura de Ignacio Joaquim da Cunha, figura de destaque, sublinham a seriedade com que os assuntos de herança eram tratados. Este evento é um exemplo claro de como os registros históricos são essenciais para compreender e valorizar a história, fornecendo detalhes valiosos sobre a vida, as pessoas e as práticas de tempos passados. Além disso, a existência e a preservação desses documentos históricos são cruciais para entendermos as tradições e a memória coletiva de nossa comunidade.

Testamento disponível em Resgate da História 

Referências:

Realização, arte e roteiro: Historiador Charles Aquino

Pesquisa e Paleografia: Historiador Gilson Magela Campos (In Memoriam) em 2010.

Acervo: IHP – Instituto Histórico de Pitangui, Minas Gerais.

 

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